O empoderamento e a delicadeza da voz feminina no palco nativista

Mulheres que encontraram na cultura Rio-Grandense uma forma de unir a paixão e tradição ao o que mais as faz feliz: cantar

Bruna Tomaselli, Helena Knob, Thaane Otero

brunatomaselli@hotmail.com; helenaknob2011@hotmail.com; nany_thaane@hotmail.com

“Bota o coração pra sonhar, quero ver quem paga pra ver, até onde eu posso chegar”. Este trecho, retirado da música de Shana Müller, uma conhecida cantora e apreciadora do tradicionalismo gaúcho, busca mostrar, não apenas para o Estado do Rio Grande do Sul, mas também para as mulheres de todo o Brasil e do mundo, a força feminina através da música e do gauchismo mesmo em meio a uma cultura predominantemente masculina.
Em um texto publicado no site do programa Galpão Crioulo, da RBS TV no dia 07 de Abril de 2017 Shana Muller declarou: “Não precisamos ir longe. Quem de nós já não ouviu e/ou cantou junto ‘churrasco, bom chimarrão, fandango, trago e mulher. É disso que o velho gosta, é isso que o velho quer!’ Ahãm. Bem isso: essas ‘coisas’ quer o velho. Mas a gente não é coisa, a gente é gente”.
A história da mulher no Brasil é marcada por três grandes movimentos feministas: as reivindicações por direitos democráticos, a liberação sexual e a luta de carácter sindical. Isso nos mostra que desde os séculos 18 e 19 e principalmente desde meados do século passado, as mulheres vêm em busca de direitos civis, políticos e sociais, e claro, a igualdade de gênero, seja através de manifestações, campanhas ou mobilizações tanto na internet ou nas ruas. Hoje a força feminina ainda busca melhorias e igualdade mesmo sabendo que 18% das pessoas no mundo acreditam na inferioridade feminina conforme pesquisa divulgada em março pela IPSOS.

Em meio a todas essas lutas e controvérsias, encontramos no Rio Grande do Sul, mulheres que através da música nativista superam esses desafios diariamente, como por exemplo, Roberta Soares, cantora nativista de Palmeira das Missões, que traz consigo a batalha diária da profissão e a busca pelo reconhecimento.
No Estado mais ao sul do país, mesclando os pampas com o som do berrante, a cultura gaúcha se funde entre movimentos rio-grandenses como o tradicionalismo e o nativismo, com rodeios, festas típicas, cantorias e danças, e o povo que disso desfruta, cresce com carinho pelo seu chão, com amor e orgulho pela própria cultura e descendência. Sob esse cenário que eclode quem faz desta tradição, além de um símbolo, uma forma de se expressar e sensibilizar o outro, como Roberta, que sentiu na música a vontade de transmitir o que desde muito nova aprendeu com seu povo.

Roberta Soares. Fonte: Agência da Hora UFSM-FW

“Optei por me identificar ao interpretar as coisas da nossa terra e pela emoção que só cantar o nativismo me proporciona”. O início de sua carreira se deu em alguns festivais infanto-juvenis como Carijinho e Canto dos Ervais, ambos concursos em Palmeira das Missões, que influenciada pela sua mãe, que lhe ensinou os primeiros clássicos do nativismo como “Esquilador” de Telmo de Lima Freitas e “Desgarrados” de Mario Barabá, busca transmitir através da música gaúcha mensagens de preservação e tradição. “Através das nossas canções conseguimos passar mensagens de preservação no mais amplo sentido da palavra, como preservação dos nossos costumes, preservação da natureza, cultuar o passado e nossas origens, o amor, e pensar no futuro de forma culta e poética pois nossas letras são lindas e profundas”.
A cantora já premiada com o 1° lugar no Canto dos Ervais por três anos consecutivos, vê e sente que no meio nativista, a mulher ainda enfrenta muitos “tabus”, e diz que seu sonho é que isso mude com as novas gerações.

-Na verdade, até hoje esta é uma questão latente. Em sua maioria os festivais apresentam intérpretes masculinos, creio que muitas vezes até mesmo pelo fato de os autores não acreditarem no potencial da voz feminina (já tive que ouvir que não teria força pra cantar determinado ritmo) também por uma questão cultural, as meninas ocupam 80% do cenário musical em festivais infantis caindo esse número consideravelmente quando entrando na vida adulta por priorizar outras coisas como faculdade, relacionamentos e afins (isso é o que vejo no meio, não o que acredito pois vejo que podemos conciliar). Já para os meninos, infelizmente ainda é mais fácil, não existe tanta superproteção quando resolvem sair mundo a fora viver de música. Tem também a questão de más interpretações pela parte de colegas do meio que podem levar para caminhos obscuros alguma aproximação feminina em relação a parcerias (é sempre mais fácil neste sentido quando você já é acompanhada).
Roberta também crê que as mulheres sejam bem aceitas em festivais, porém, não tem certeza quanto a carreira solo. Nas apresentações e shows também vê uma boa aceitação em relação a fama e sucesso, e considera a “mulherada” tranquila, mostrando seu trabalho de forma serena, evitando a ganância excessiva e percalços do mundo da fama. E em uma mensagem para “as novas gerações femininas que vem por ai seria a união, unirmos instrumentistas, letristas, melodistas e intérpretes para conquistarmos nosso espaço sem depender de favores. Acreditar no seu sonho, mas nunca deixar de ser humilde e reconhecer os erros. Cantar sempre por amor! Subir no palco sempre sabendo que vai poder dar o seu melhor e se entregar de corpo e alma às canções”.

Inspiração de atuais cantoras nativistas

Criada em uma família musical, Oristela Alves, natural de Uruguaiana iniciou sua carreira como cantora em 1969, no Festival de MPM de sua cidade natal, sendo premiada com o primeiro lugar com uma canção de Kenelmo Amado Alves e Chico Alves. Participou de conjuntos de baile como cronner ao lado de Cesar Passarinho e seu irmão, compositor Chico Alves.

Oristela Alves. Fonte: Arquivo pessoal

Canta e encanta desde os três anos e não sofreu com o preconceito desde que colocou seus pés no palco “Lá em Uruguaiana eu já era conhecida por cantar nos programas de auditório que na época, 45 anos atrás era o que melhor tinha para fazer, já tinha fã, já tinha torcida, não tive problema”. Filha do primeiro compositor a se inscrever na Califórnia da Canção Nativista na década de 70 (Kenelmo Amado Alves, falecido há 20 anos) não gostava de cantar músicas gaúchas pois estava em uma fase de cantar músicas de Elis Regina e Clara Nunes “Música gaúcha era como se fosse música de grosso” afirma Oristela.
Na 5ª edição da Califórnia Nativista, Oristela subiu ao palco para interpretar e ganhar seu primeiro prêmio como melhor intérprete da música escrita pelo seu pai “Décima do Candinho Bicharedo” que foi feita especialmente para ela se apresentar neste evento “no momento em que eu entrei para cantar no palco, eu não sei o que aconteceu, parece que eu tinha encarnado a personagem”.

É fato que o Rio Grande do Sul sempre foi terreno fértil para o surgimento de cantoras de grande nível, algumas conseguiram maior expressão nacional, outras estão buscando seu espaço, e outras, como é o caso de Oristela, que decidiu não participar dos festivais cantando e sim organizando-os. “Hoje não participo mais cantando, porque há um tempo atrás, eu optei por participar organizando festivais. Em Santa Maria organizei a Tertúlia Musical Nativista, organizei o Minuano da Canção Nativa, os três primeiros anos em festival de Musicanto Sul-Americano de Nativismo de Santa Rosa. E eu me sinto bem atrás das câmeras, as vezes quando a música vai pelo menos ficar no disco, eu aceito a solicitação dos organizadores a cantar e também participo como jurada em eventos”.

Pioneira na música nativista Oristela Alves aconselha as meninas que estão começando neste ramo artístico a nunca desistir “Deus nos dá um dom tão bonito que é cantar e que não podemos ser egoístas de guardar pra gente e não mostrar”.

“Cantar é expor na pele a própria vida”

“Ser cantador é mais que disperso, soltar rimas atoa pelo vento, é ter uma canção pra cada verso, seja ele de alegria ou lamento”. Neste trecho da música “O cantador e o violão” de composição de Raul Bósio e interpretada por Analise Severo busca mostrar que a música nativista transparece os mais puros sentimentos e retrata de forma sincera os caminhos percorridos, sejam eles de glórias ou desalentos.
Analise Severo, 42 anos, natural de Santiago-RS apresentadora e cantora nativista e teve seu trabalho iniciado em meados dos anos 90. O começo de sua vida na música gaúcha foi de muitos desafios, mas fez de suas oportunidades um caminho para o sucesso e reconhecimento, tendo como influenciadoras cantoras precursoras do cancioneiro, como Oristela Alves, Maria Luiza Benitez, Fátima Gimenez, Loma e Berenice Azambuja, que segundo ela, continuam sendo suas maiores inspirações.

Analise Severo. Fonte: Arquivo pessoal

Ao ser questionada sobre sua escolha pela música nativista, a intérprete disse que é eclética e por isso canta outros estilos musicais também. “Já trabalhei com invernadas artísticas, em banda de baile (Musical Novo Tempo), cantei em bares na noite, em jantares e festas”, porém, afirma que as canções nativistas sempre a fascinaram, principalmente por permiti-la construir sua própria trajetória e identidade através de músicas inéditas nos festivais. Com o trabalho desenvolvido, Analise já gravou cinco Cd’s e um EP, além disso está preparando para 2018 um novo trabalho realizado juntamente com seu parceiro de vida e arte Jean Kirchoff.
Com muito orgulho a cantora conta que já ganhou diversos prêmios, entre eles o de melhor intérprete do estado em um dos maiores festivais de interpretação que era chamado FEGART (Festival Gaúcho de Arte e Tradição) e que hoje é conhecido como ENART (Encontro de Artes e Tradição Gaúcha). “Depois disso dei a largada para os festivais profissionais e hoje tenho em meu acervo em torno de 200 premiações, com troféus de melhor intérprete, primeiros, segundos e terceiros lugares dos festivais de quase todos os cantos do RS”. Além destas vitórias em sua bagagem, em 2013 Analise teve a honra de receber o troféu de melhor cantora do RS intitulado “Vitor Mateus Teixeira”-Teixeirinha, entregue pela Assembléia Legislativa do Estado.
Ser mulher não a impediu de levar seu sonho adiante, pois encontrou como solução sempre buscar naturalizar o fato de ser mulher e minoria no meio artístico regional, conseguindo assim conquistar a admiração e respeito dos colegas.“Todos sabemos que o RS ainda é um Estado bastante machista, porém, creio que com a cabeça erguida e confiança nas nossas atitudes, sempre com humildade e naturalidade, a mulher há de conquistar dia a dia seu espaço, com muita força”. Ainda nesse contexto, ressalta que as cantoras nativistas são vistas com muito carinho pelo público gaúcho. “O público ainda é carente de vozes femininas, cada cantora que se destaca, percebe a aceitação e o retorno é fraterno”.
Para as meninas que estão iniciando nessa jornada, Analise deixa sua mensagem “Não desista nunca dos seus objetivos. Sabemos que o mundo machista nos cerca, principalmente no mundo regional, porém, temos muitas vantagens sobre o sexo masculino, a principal delas é a doçura, a força e habilidades que Deus nos deu, de fazer muitas coisas ao mesmo tempo, de termos tarefas e mil coisas pra desenvolver num dia… e vencermos, pois somos mulheres!”.

*Reportagem produzida na disciplina de Redação Jornalística 2 com parte do jornal- laboratório online da turma.

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Sobre o autor

Thaane Otero
Estudante de Jornalismo na Universidade Federal de Santa Maria /campus Frederico Westphalen, Rio Grande do Sul, Brasil.

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