Diário de bordo: personagens da BR (parte 2 – o regresso a Frederico Westphalen)

As entrevistas eram feitas na base de um gravador e conversa entre jornalista e personagem. Foto: Isadora Stentzler.

Domingo, 14h56min, 03 de dezembro de 2011. Prontas para recomeçar, a BR-283 de Chapecó torna-se o local ideal. De um lado da estrada, árvores e uma sombra que nos convida a abandonar a reportagem para fugir do calor. Do outro, um cemitério que reflete o sol através dos telhados das casas mortuárias parece atrair o mau olhado, fazendo com que esperemos 18 minutos até conseguir uma carona.

Também pudera, na estrada em questão carros em alta velocidade pareciam participar de uma corrida cujo destino era dalém da linha do horizonte. Mas a espera é recompensada com a presença de não só um, mas um casal de personagens, que começaram a ilustrar a segunda parte dessa aventura jornalística.

Honestos ao extremo

Claudir e Miriam Valduga. Ele com 43, ela com 41. Passavam pela BR-283voltando para casa do aniversário de uma afilhada em Chapecó. A casa que moram fica no interior de Caibi – SC e é herdada da família de Miriam, onde há treze anos o casal vive e sobrevive. Juntos há 22 anos, eles consideram a maior graça divina ter um casal de filhos: o Jeferson, 19, e a Mirieli, 16.

Os filhos estudam e são incentivados para que o façam. Na época de Claudir e Miriam, as coisas eram difíceis. A escola ficava longe de casa (cerca de 10 e 6 quilômetros de distância, respectivamente), não havia transporte escolar. Dessa forma, Claudir estudou somente até a quarta série e Miriam até a sexta do ensino fundamental. A agricultora ainda procurou concluir esta etapa de estudo pelo EJA (Educação para Jovens e Adultos) e conseguiu a conquista há três anos, contando que gosta de sala de aula e que, se tivesse a oportunidade, completaria também o ensino médio.

Apesar da falta de escolarização, o casal acredita na boa educação que tiveram dos pais. Falam de um sistema correto, no qual a honestidade é prioridade. Aprendizado que procuram passar para os filhos, para que estes alcancem os seus objetivos de vida da maneira certa. É assim que confiam em um futuro bom para Jeferson e Mirieli. A agricultora ainda acrescenta sobre a importância dos aprendizados que uma família pode passar para os seus descendentes: “A vida é uma só. E o que é que vai ficar se não uma história que a gente vai deixar?”

A vida no campo é de bastante trabalho, mas o casal não acha difícil o que faz porque gosta do que faz. Plantam hectares de milho e fumo, produzem leite e criam suínos para o abate. A maior dificuldade com a qual tiveram que lidar até hoje foi em relação à maldade (aquela que não querem ver em seus filhos) de pessoas que compraram suas produções com cheques “voadores”, desfalcando a família Valduga por tudo o que se dedicaram às suas terras naquele ano. Mas isso também serviu de aprendizagem, abrindo os olhos dos ingênuos agricultores. No mais, a vida é calma. Nas horas vagas eles assistem TV, tomam chimarrão, e nos fins de semana se encontram com a comunidade e retribuem visitas aos vizinhos.

 

Humildes ao extremo, os agricultores Miriam e Claudir Valduga também são simpáticos. Foto: Joana Schumann.

E falando em retribuição, faz três anos que Claudir e Miriam conheceram, por meio de um familiar, duas famílias que acabaram por se tornar muito especiais para eles. “Gente boa que nem a gente”, enfatiza Miriam. Os novos amigos são do litoral e diziam ter vontade de conhecer o extremo oeste catarinense, região onde fica a cidade de Caibi. Assim, acabou acontecendo uma troca: o casal teria oportunidade de viajar para lá e as famílias para cá. A experiência foi um sucesso! Claudir viu o mar pela primeira vez e, encantado (“abobado”, como ele próprio e a esposa o descreveram para nós) com a imensidão da paisagem, pegou gosto e passou a reservar pelo menos dez dias de cada ano para visitar os novos amigos e as águas salgadas.

Com a beleza prevalecendo na vida do casal, indagamos se havia necessidade de ainda sonhar. Eles nos responderam positivamente e Claudir ainda comentou: “sonho sempre tem”. O agricultor gostaria de se aposentar e ir morar de frente para o mar. O dinheiro para isso, quem sabe se ganhando na Mega-Sena, um outro sonho tipicamente brasileiro do agricultor. A diferença, por sinal, estaria no manejo da bolada ganha: com boa parte do dinheiro, Claudir desejaria ajudar a pessoas carentes. Já Miriam sonha com uma casa não tão velha quanto aquela em que vive, mas não sabe se gostaria de viver no litoral fora da temporada de verão. Será que o jeito de morar em uma casa nova não é unindo este sonho com o do marido? De qualquer forma, o casal formado pelos honestos ao extremo é feliz. E isso, independentemente do lugar. Como diria na música de Hyldon, regravada por Kid Abelha: “Jogue suas mãos para o céu e agradeça se acaso tiver alguém que você gostaria que estivesse sempre com você: na rua, na chuva, na fazenda, ou numa casinha de sapê…”. E é aí, na rua, ou na chuva ou na fazenda, que o casal permanecerá feliz para sempre.

Uma fé de superação

Claudir e Mirian nos deixaram em uma BR a qual não conseguimos identificar, logo na saída de Palmitos. Gentilmente, o casal nos indicou qual lado do trecho deveríamos ficar para que pegássemos carona no sentido correto. Partimos então para a direção apontada, e com fotos nos despedimos do casal.

O local em questão aparentemente apresentava um problema. Pouco antes do ponto em que estávamos, havia uma encruzilhada que dividia os motoristas entre o caminho pro Rio Grande do Sul e a ida a Palmitos – SC, escolhas que aparentemente levavam a maioria dos veículos a trafegar não a nosso favor.

Por um instante, tivemos a impressão de que demoraria horas para conseguirmos carona de volta a Frederico Westphalen. Ilusão. Mesmo combinando que não mostraríamos mais as nossas placas para caminhões (devido à dificuldade em gravar áudios), em 11 minutos de espera estaciona, com placa de São Paulo, capital, o veículo longo carregado de 29 mil quilogramas de carne bovina.

Com a porta aberta, conhecemos Adriano Roger Fernandes, 34 anos. Moreno, óculos escuros, relógio no pulso esquerdo e algumas carteiras de cigarro espalhadas no caminhão, o paulistano, que dá sua carona pela primeira vez desde que trabalha na estrada, aceita o desafio de tornar a cabine do seu veículo os bastidores de uma reportagem, e já conta: a carga que vem de Rondônia tem seu destino traçado até o meio do Rio Grande do Sul. Mas pela sua inexperiência nas regiões sulinas, por ora, quase parou na Argentina, perdendo totalmente o rumo. Quem sabe, um atraso ocasional que, se não tivesse acontecido, não traria Adriano para nos ajudar.

Aparentemente, o caminhoneiro, que hoje mora em Campo Grande – Mato Grosso do Sul, não tem nada para nos contar. Mas, por detrás dos óculos escuros, o motorista gradualmente revela sua identidade e vida.

Até três meses atrás, a vida de Adriano passava longe das rodovias e BRs do Brasil. O seu lugar era numa autoescola, coordenando aulas de carretas. Um trabalho que não seria gratificante se não fosse por um motivo: Camila. O motorista tornou-se um apaixonado e Camila, sua aluna, recebeu, além de uma CNH (Carteira Nacional de Habilitação), um marido.

Adriano e Camila namoraram por seis meses, casaram e foram pra São Paulo. Ela, que na época estava no semestre final do curso de Agronomia, preparava sua monografia e voltava seguidamente para Campo Grande com o intuito de realizar orientações com o professor coordenador da tese.

Pausa. A partir daqui, a história do caminhoneiro, que vem como que para fechar com chave de ouro essa reportagem, passa a ganhar cor, grau, gênero, número e um feto. A hora, já não nos importa quanto marca, pois nesse instante a viagem nem é mais para Frederico Westphalen, e sim para a vida de Adriano. O desfecho se dá na história que se segue.

Com um ano de casados, Camila engravida. E, assim como em qualquer família, houve alegria em saber que uma criança estava chegando. Porém, sem dar atenção à ultrassonografia, Adriano comentou com sua esposa que gravar um vídeo do bebê em formação seria um belo presente para ele anos mais tarde. Ela aceitou.

Em uma das viagens de Camila até Campo Grande, ela procura um ultrassom a pedido do marido, e grava o vídeo de seu filho, que passava do 5º para o 6º mês de gestação. Mas é descoberto um problema. Após conversas com o médico, Camila liga para Adriano avisando: “o médico disse que ele vai nascer com a coluna aberta” – ele imitava para nós sua esposa. O chão do casal cai.

Coluna aberta, ou Espinha Bífida, é uma má formação da coluna vertebral, desencadeada pela deficiência de ácido fólico no organismo da mãe no instante da formação da criança. Ela ocorre quando a extremidade inferior do tubo neural não se fecha corretamente, causando sérios danos medulares, além de comprometimento físico nos membros inferiores, bexiga e intestino da criança, podendo ainda acarretar distúrbios mentais.

A partir de então, monografias e trabalhos à parte, o casal passa a correr atrás de um médico que possa tratar da saúde do filho o qual esperavam. A busca durou um mês, e o resultado eram portas fechadas na cara, “porque ninguém queria pegar o caso”. Até que encontraram um médico com a seguinte resposta: “ele pode nascer normal, ele pode nascer e vegetar, ou ele pode nascer e morrer na hora do parto. Mas a questão é, agora é hora de cuidar de vocês”, conta Adriano.

O “cuidar de vocês” ao que se referia o médico, era o abatimento de um casal que praticamente esquecera que o filho nasceria especial. Não havia quarto para o recém-nascido, nem enxoval, nem nada. A criança que precisaria de cuidados a mais, também precisava sentir logo no nascimento o amparo e proteção de seus pais. Sendo assim, preparos pré-nascimento seriam essenciais.

Adriano conta que as palavras do médico foram como “um tapa na cara” deles. Embora o filho fosse a melhor coisa da vida dele, também se tornava a situação mais difícil de se lidar na vida. Se ele era especial, exigia tamanha maturidade e responsabilidade. No final das contas, o resultado foi melhor do que a encomenda.

No meio disso tudo, sua mulher que outrora estava abatida mudava o semblante. “Duvidei se era choque ou se era fé. Quando estava todo mundo desesperado, ela disse: ‘Deus vai cuidar do meu filho’”. Fé esta que se manifestou inclusive na escolha do nome: Rafael.

No sétimo mês de gestação, em uma missa realizada na Igreja de Santo Antônio de Campo Grande, o padre explanava sobre São Miguel, São Gabriel e São Rafael. “Foi quando ele falou assim: ‘Rafael, significa curado por Deus’. E aí minha esposa olhou pra mim e disse: ‘Adriano, se quando eu for comungar o padre falar comigo, o nome do nosso filho vai ser Rafael’”. Dito e feito. Quando Camila foi até a frente,o padre que lhe olhou com amor lhe dirigiu a pergunta “Está de quantos meses?”, e Camila respondeu “Sete”, então ele concluiu “Que Deus vos abençoe!”.

Rafael nasceu com parto cesariana aos nove meses de gestação. Porém, assim que entrou no mundo, também já entrou numa sala de cirurgia com um neurocirurgião. Fora esta, a criança foi ainda submetida a mais duas operações. Sendo que uma delas fora para colocar uma válvula em sua cabeça, e as outras duas para ajustes na coluna. Tudo isso com menos de um ano de vida.

Adriano leva consigo fotos da família, as quais ele exibe orgulhosamente com um sorriso de orelha a orelha. Foto: Joana Schumann.

Hoje, o casal, que esta junto há 4 anos e com um belo filho de 3, é feliz e apaixonado. Para matar a saudade, Adriano nos responde em risos “TIM!”. Ligações diárias e longas conversas são a solução para saber como estão do outro lado do país aqueles que ele tanto ama. Além disso, o caminhoneiro leva consigo fotos da família, as quais ele exibe orgulhosamente com um sorriso de orelha a orelha.

A conversa poderia continuar por quantos mais quilômetros tivessem à frente. Mas, sem perceber, já eram 17h35min e a paisagem não era mais um cenário de faroeste, ou o abandono de uma rodovia. Mas, sim, tratava-se de cerca de 100 metros de um quebra-mola, local outrora estratégico para pedir carona na BR-386 em Frederico Westphalen.

Adriano se despede, segue seu caminho e talvez sem entender que, mais que compartilhar sua historia, deixou a mensagem de superação a duas jornalistas que não conseguiam se manter imparciais diante de tanta emoção. O sol é forte em Frederico Westphalen, mas mais forte é a sensação de dever cumprido que aliviava nossas mentes. Agora, só bastava chegar em nossas casas, largar as mochilas, e deixar que o teclado de nossos computadores nos permitisse viajar novamente, ao lembrar cada palavra que ouvimos no nosso diário de bordo com os personagens da BR.

 

Isadora Stentzler e Joana Schumann / Da Hora

 

 

About Agência Da Hora