Tragédia na Kiss em Santa Maria: não há palavras!

Trinta e um de janeiro de dois mil e treze. Quatro dias depois da tragédia que assolou Santa Maria, eis que crio coragem para escrever sobre tal fato.

Na madrugada do dia 27 de janeiro, 235 jovens perderam suas vidas e outras dezenas seguem em estado crítico em hospitais do estado após o incêndio na boate Kiss. Número assustador, aterrorizante, triste. Destes 235 jovens, 108 eram estudantes da UFSM, da nossa universidade.

O incêndio da Kiss também é nosso, arrancou pedaços de nós. Nunca a UFSM se uniu tanto, nunca precisamos tanto mostrar que somos uma só família como agora. A Kiss é nossa, as vítimas são nossas, as famílias são nossas, a dor é nossa, e a culpa também é de todos nós e de ninguém ao mesmo tempo.

Eu freqüentei a Kiss, eu fiz amigos na Kiss, eu perdi amigos na Kiss, eu deixei parte de mim na Kiss e por muito pouco eu não fiquei na Kiss. Por providência de uma força superior minha ida à Santa Maria foi cancelada naquele final de semana. Minha mãe não me deu o dinheiro pra passagem do ônibus, acabei ficando em Frederico para trabalhar. Nunca agradeci tanto por ser pobre.

Há oito dias eu chorava os quatro anos da morte de um grande amigo, hoje eu choro 236 mortes de jovens como eu. Mais do que as minhas perdas, o estado todo perdeu seus filhos, o país perdeu seus filhos, as mães e pais desesperados perderam seus filhos.

Na fatídica madrugada do dia 27 eu estava me divertindo em uma festa, paguei minha comanda e sai para ir embora como sempre. Ninguém me barrou na porta, ninguém obstruiu minha rota de fuga. Eu cheguei em casa, mas 235 iguais a mim nunca mais retornarão.

Ao sentir o desespero da minha mãe no telefone bradando pra quem quisesse ouvir; “FILHA, AINDA BEM QUE TU NÃO FOI, PODERIA SER TU LA DENTRO, AINDA BEM QUE TU NÃO FOI!” desandei a chorar, em estado de choque e pensando nas 235 mães que ligavam incessantemente para seus filhos, em busca de uma notícia boa e nada tinham de retorno, enquanto do outro lado da linha, bombeiros continham as lágrimas ao ouvir os celulares tocando sem parar e não tendo coragem para atender e dizer: “seu filho está morto”.

Enquanto isso eu nada poderia fazer a não ser tentar contato com os vários amigos que tenho em Santa Maria e que poderiam estar lá naquele momento. Felizmente obtive retorno de quase todos. QUASE! Um ficou nas cinzas, partiu sem poder se despedir enquanto tentava, em vão, salvar sua namorada da asfixia. Morreu tentando propagar o amor que sentia, morreu por amor. A lembrança da amizade permanecerá para o resto da vida, tanto minha quanto dos outros milhares de amigos que perderam parte de si, mas a dor não cessará em momento algum. Ela acalma, diminui, acostuma, mas nunca cessa. Ao menor toque ela desperta cruel e sanguinária para machucar tudo de novo.

A vontade que eu tinha, enquanto jornalista era de estar lá noticiando, buscando informações, mostrando o incidente, não posso negar. Quando escolhi essa profissão, eu sabia que não viveria somente de notícias boas, mas também de grandes tragédias. Mas enquanto cidadã, ser humana, o que eu mais queria era poder abraçar cada mãe inconsolável, dar água a quem precisava, dar consolo a quem não via saída. Todos nós abraçamos Santa Maria e morremos lá.

O mundo ficou consternado, o Brasil parou pra ver os corpos caindo uns por cima dos outros ao serem retirados da boate, transmitidos e repetidos incessantemente pela mídia também desesperada que buscava entender o ocorrido e noticiar os fatos. O Rio Grande do Sul chorou lágrimas de sangue, Santa Maria morreu.

A linda, querida e Santa Maria que abriga com tanto amor e carinho os jovens universitários, agora chora a maior perda da história. São sorrisos que não se ouvirão mais, são sonhos que não se realizarão, são profissionais que não mais se formarão, são corações que não mais pulsarão junto ao coração do estado.

A indignação e a busca por culpados é inevitável, temos a necessidade psicológica de achar uma pessoa para carregar o fardo da dor, para ser responsabilizada por nossas perdas. Não podemos nos cegar diante dos fatos, deixar que a raiva tome conta. Há muita coisa a ser investigada, apurada, dita e descoberta. Deixemos que a justiça faça a parte dela. A terrena e a divina! Vamos nós nos ater aos sentimentos.

Já parei e recomecei a escrever este texto umas 20 vezes, no mínimo. Cada vez que tento recomeçar, meus olhos turvam em lágrimas e minhas mãos tremem de emoção e dor. Agora já são 3 horas e 20 minutos da madrugada do dia primeiro de fevereiro e há poucos minutos as mídias digitais anunciaram a morte de mais um jovem que estava na Kiss. Já são 236. Neste momento mais uma mãe se debruça sobre um caixão para velar seu amor maior, mais um pedaço nos foi arrancado.

Pra se comover com essa tragédia e sentir a dor e o luto não é necessário ter parentes ou conhecidos figurando a lista macabra, basta que tenha sentimentos e seja humano. Não há quem não sinta, mesmo que nos recônditos da alma, um pouco da dor de cada família que ficou chorando os seus.

Nossa vida vai seguir adiante como deve ser, as aulas retornarão na segunda feira, os trabalhos serão entregues, as provas serão feitas, a mãe que enterrou o filho vai continuar trabalhando. Cada um seguirá sua vida, mas no fundo sempre carregará a dor, a lembrança do fatídico dia 27 de janeiro.

Nós, jovens, certamente continuaremos a freqüentar festas em casas noturnas, boates e pubs, e em muitas vezes esqueceremos de verificar se há extintores, saídas de emergência ou algo do gênero, mas o que nunca esqueceremos será o pavor vivido por nossos irmãos, o sentimento de impotência diante da morte, a tentativa desesperada da jovem que buscou dentro do freezer o ar puro para não morrer sufocada, o sms do namorado dizendo “amor, estou morrendo e não vou conseguir me salvar, saiba que eu te amo”, a dor da mãe que não foi trabalhar na boate porque se sentiu mal e mandou a filha no lugar, a garota desesperada que pediu socorro pelo facebook e morreu abraçada ao namorado, a mãe que ligou 104 vezes para o filho em busca de noticias, e os tantos amigos e namorados que tentaram salvar seus afetos em vão.

Eu não sei se conseguirei entrar novamente em uma festa, seja ela onde for, sem sentir um súbito ataque claustrofóbico me sufocar a alma, não sei se voltarei a vida noturna com a mesma disposição e desleixo de antes. Talvez agora eu me lembre de, antes de sair de casa, ligar pra minha mãe e dizer que a amo, que mais tarde eu ligo pra dizer que estou bem, que voltei sã e salva e não em um caixão lacrado como poderia ter sido no dia 27.

Até agora eu só consegui tomar uma atitude depois de tudo que aconteceu. No domingo, sem pensar duas vezes, fiz minha mala e peguei o primeiro ônibus que me levasse pro colo da minha mãe, pro abraço dela, podendo agradecer pelo NÃO que ela me deu dois dias antes e que fez a diferença para que eu estivesse hoje aqui na minha casa escrevendo este relato de pesar pela tragédia da Boate Kiss. O melhor abraço que eu já ganhei na vida foi quando minha mãe me viu na frente dela e chorou comigo a dor de Santa Maria.

“É tão estranho, os bons morrem jovens. E assim parece ser quando me lembro de você que acabou indo embora cedo demais!”

 

Kelin Ponciano/ Da Hora –este texto é uma crônica pessoal e não uma matéria jornalistica, dado a parcialidade apresentada.

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