ENTREVISTA: “primeira-dama do lar” sob olhar feminista

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Ana Luisa atua no grupo de pesquisa Demodê, democracia e desigualdades, participou na formação do Núcleo de Mulheres da UnB, e hoje compõe o coletivo Rua – Juventude Anticapitalista. Créditos: Arquivo Pessoal / Facebook

A reportagem da Revista Veja a respeito de Marcela Temer, esposa do presidente interino Michel Temer, provocou muitas discussões principalmente sobre o estereótipo feminino exaltado pelo veículo, e em relação à conjuntura atual da política brasileira que, segundo a revista, não arrefeceu a paixão do casal, exaltando alguns exemplos das ostentações românticas de Temer, “um homem de sorte”, para sua “mulher de sorte”.

Até o alarme falso de uma segunda gravidez de Marcela remete à política nacional: segundo sua tia “acharam que não teria sido mesmo um bom momento para ela engravidar, dada a confusão no país”.

Para falar sobre estes dois principais temas em discussão provocados pela reportagem, conversamos com Ana Luisa Souza, estudante de Ciência Política na Universidade de Brasília, UnB. Liderança feminista, Ana atua no grupo de pesquisa Demodê, democracia e desigualdades, que tem como frente o estudo de gênero. Também participou na formação do Núcleo de Mulheres da UnB e hoje compõe o coletivo Rua – Juventude Anticapitalista.

DH- De início, gostaria que você comentasse quais as principais atividades que realiza.

(Ana) Participo do grupo de pesquisa Demodê, democracia e desigualdades, que tem no estudo de gênero uma de suas principais frentes. Pra além da atuação acadêmica, atuei no Centro acadêmico de ciência política por um ano e meio, na gestão Cordel de Mangaio, e na gestão Xica Manicongo, que recebeu esse nome em homenagem à primeira travesti não índia do Brasil que foi morta por confrontar os valores daquela sociedade. Ajudei a construir o Núcleo de Mulheres da UnB e hoje componho o coletivo Rua – juventude anticapitalista.

DH- O que representam na sociedade, no ponto de vista feminista, as atribuições referentes à Marcela?

(Ana) A luta histórica do movimento feminista conquistou alguns direitos liberais, como o direito de estudar, de votar, de concorrer a cargos públicos, de participar dos contratos, em suma, de poder participar da esfera pública. Mas a conquista desses direitos não garantiu condições às mulheres (brancas de classe média) de sair da esfera doméstica em condições de igualdade. Nós nos deparamos com uma esfera pública masculina e machista, onde os valores pretensamente evocados de racionalidade e neutralidade funcionam de forma a naturalizar o não pertencimento das mulheres à esfera pública. Ainda assim, à medida que ocupamos o mercado de trabalho, as Universidades e tantos outros espaços antes exclusivos a homens, acabou-se por no mínimo pôr em cheque a naturalização desses papéis sociais. Quando a revista Veja enaltece características como “bela, recatada e do lar”, ela diz que as “verdadeiras” qualidades femininas continuam a ser aquelas que não são aceitas na esfera pública. Embora haja diversas maneiras e correntes de feminismo, é possível pensar que nós feministas enxergamos a matéria mencionada como um atestado de como nossas conquistas e nossos avanços, que certamente ainda não foram satisfatórios, incomodam a hegemonia sexista da sociedade.

DH- Qual é a principal discussão dentro dos movimentos feministas sobre este assunto?

(Ana) Como mencionado, o movimento feminista não é homogêneo. Nós compartilhamos uma perspectiva social de desigualdade baseada no gênero, por isso lutamos, mas as semelhanças muitas vezes param por aí. A maneira como a dominação masculina se manifesta interage com outras características sociais, econômicas, culturais, ambientais, históricas e até mesmo com a individualidade de cada mulher. Por isso é natural que nasçam diferentes abordagens e até mesmo estratégias para se sobrepor essa dominação masculina, por vezes denominada de patriarcado. A experiência da infantilização das mulheres e o confinamento à esfera privada, tida como experiência universal das mulheres, foi acusada pelas feministas negras como uma experiência particular de mulheres brancas de classe média, uma vez que depois de livres as mulheres negras continuaram sendo mão de obra explorada no trabalho doméstico e no campo. A partir disso, também me colocando como feminista, branca, universitária e marxista, eu considero que sendo as mulheres seres humanos diversos, eventualmente não vão se identificar com a estigma de bela recatada e do lar. Eu acredito que a repercussão se deu porque muitas mulheres entenderam que o enaltecimento dessas características se deu em detrimento de tantas outras. Ou seja, o problema não é ser bela, recatada e do lar. O problema é não poder ser diferente disso. Por isso nos revoltamos.

DH- A discussão vai além das adjetivações referentes à Marcela Temer e ao padrão feminino exaltado pela revista, abrindo espaço para debates no âmbito político. Como estudante de Ciência Política, o que esta reportagem representa frente à conjuntura atual da política brasileira?

(Ana) Existem alguns fatos que não podem ser ignorados nessa situação. Primeiro que a Veja está deliberadamente apoiando o possível governo de Michel Temer e Eduardo Cunha, ou simplesmente o não governo do PT. Segundo que a revista tem uma abordagem claramente misógina quanto à presidenta. Cunhar algo ou alguém de misógino, na sociedade, normalmente é visto com desconfiança, mas essa alcunha cabe à revista receio de imprecisão conceitual. Me recordo de uma matéria em que havia uma foto de Cristina Christner com setas apontando tudo que havia de errado em sua imagem, e curiosamente boa parte desses pontos eram símbolos de sua feminilidade. Cunha, Temer e a grande mídia estão empenhados na saída do PT, bem como em contrapor o projeto político da esquerda. É verdade que o governo Dilma não apresentou grandes melhoras em políticas para mulheres. Aliás, até a Secretaria da Mulher deixou de existir independentemente para se juntar numa pasta de “diversidade”. Mas esse grupo tem sinalizado que nesse “novo” projeto político que deseja ser implementado cabe tampouco respeito às mulheres. A PL 5069, que dificulta o acesso ao coquetel anti-AIDS e pílula do dia seguinte para mulheres vítimas de estupro, é um exemplo simbólico de que Cunha – e parece que Temer não discorda – está empenhado no retrocesso de direitos duramente conquistados.

Jakson Idegar Dal Magro – 3º semestre de Jornalismo

 

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