O antes e o começo da estrada
Frederico Westphalen – RS, 38 minutos do segundo dia de dezembro. A mente, porém, nem está mais na madrugada quente ou nos mosquitos que pairam pelo quarto, e sim nas tantas perguntas que nos inquietam: “quem nós iremos encontrar?”; “como conversar?”; “o que perguntar?”. Tanta coisa para saber, mas tudo tão incerto.
A noite parece ter congelado o tempo e, enquanto isso, as horas são contadas para o diário de bordo começar. Com o bloco e a caneta inspirando os sonhos de jornalistas, adormecemos pensando no que poderá acontecer na metade da tarde que está por vir. O destino é a cidade oestina de Chapecó – SC.
Chegamos ao lugar estratégico para pedir carona, próximo ao principal trevo de Frederico Westphalen, na BR-386, às 14h47min do dia 2 de dezembro de 2011. Com um céu azul claro e um calor de 30º nos acompanhando, estávamos a cerca de 100 metros deste trevo, logo após uma placa que se referia ao quebra-mola que ali existe. Os olhos daqueles que reduziam a velocidade dos automóveis que passavam no local estavam curiosos. Alguns zombavam, outros tentavam um flerte e fracassavam, e ainda havia quem fingisse que éramos invisíveis. Foi quando uma boa alma apareceu.
O caminhoneiro fiel
Às 15h08min, uma pessoa reduziu a marcha, pisou no freio e estacionou seu caminhão que logo depois nos contou ter sido um investimento de R$ 30.000, realizado há dois meses. Antes de embarcarmos e jogarmos nossas mochilas na cabine do veículo, explicamos o objetivo de nossa viagem: colher as histórias de vida das pessoas que, por algum motivo, resolveram viajar conosco em certa quantidade de quilômetros não quilometrados. O personagem de cabelos e óculos escuros, barba por fazer envolta da boca que sorria, aceitou participar da brincadeira, mas optou por não ser identificado. Nos 38 minutos daquela tarde que passamos com R. A., foi possível conhecer um pouco daquele ser humano que estava na estrada há cinco dias, mas já ansiava para encontrar a família.
R. A. passava pela BR-386, pois havia entregado uma carga vinda de São Paulo na cidade de Erval Seco – RS e agora seguia neste caminho rumo ao seu atual lar na capital paranaense, Curitiba, onde encontraria a esposa e o filho. Estes que logo foram lembrados.

De carona com R.A., que não quis ser identificado, reconhecemos no caminhoneiro o amor pela familia. Foto: Joana Schumann.
A história do caminhoneiro nascido na cidade de Campinas – SP, que relata agora para nós sobre a sua vida 32 anos depois de vir ao mundo, é longa. R. A. fora bom aluno até a sexta série do ensino fundamental. Porém, foi nesse período que teve sua primeira nota vermelha e, também, o seu primeiro encontro com as dificuldades que iria enfrentar na vida em relação ao estudo. Na oitava série, precisou largar a escola para trabalhar. Depois, até conseguiu concluir o ensino médio por exame supletivo. Ele, inclusive, conseguiu uma bolsa do Prouni (Programa Universidade para Todos) e ingressou no curso de Administração. Mas, com uma “base fraca”, R.A. não se sentiu capaz em relação aos colegas universitários, abandonando a faculdade e voltando a estudar somente muitos anos depois. Dessa vez, o atual caminhoneiro optou por fazer um curso técnico de química, no qual se formou no ano de 2009 e até hoje não trabalhou na área.
Falando em trabalho, antes de R. A. se tornar proprietário do caminhão em que estávamos viajando, ele possuía carteira assinada por uma madeireira na qual por doze anos foi responsável por vendas e manutenção de máquinas da mesma. Ainda neste emprego, foi onde também obteve por três anos certa experiência com a estrada, visto que fazia o mesmo de hoje, porém, por conta da empresa.
Sobre a esposa, R. A. nos conta tê-la conhecido em um retiro religioso há cerca de dez anos. Dois anos depois do início de namoro nasce o filho, atualmente com oito anos de idade. Hoje ela faz enfermagem, o garoto estuda e o jeito de matar a saudade quando se está na estrada é ligando todos os dias.
A esposa possui problemas no útero, o que R. A. leva como dificuldade, porque ela fica insegura com ele na estrada – não só por seus perigos habituais mas também pela distância que esta proporciona em um momento em que o casal não pode ter relações sexuais. A situação acaba por abalar o casamento, mas o caminhoneiro evidencia fidelidade à história de amor que para nós relatou.
Já fazem 15h43min, e interrompemos a conversa porque a placa que ao longe indicava Palmitos anunciava que era a hora de descer. A despedida é fria e pouco sabemos do quanto R. A. irá lembrar de nós. Quem sabe em uma ou outra curva, nos deparemos outra vez com novas e melhores histórias. Mas por enquanto era só! R. A. seguiu o seu caminho para o encontro com o amor da vida dele, e nós, o nosso para o encontro de novos personagens. A parada é na BR-158, sete quilômetros de Palmitos e já em território catarinense.
Uma curta pausa
No exato instante em que desembarcamos do caminhão de R. A., a hora marca 15h43min e o sol que ilumina a tarde arde como fogo. O cenário que relembra as antigas cidades e faroestes parece nos avisar que é necessário parar. Logo mais à frente, a menos de 50 metros, um posto de combustível era a imagem física de tudo o que precisávamos no momento: sombra e água fresca. Porém, o descanso é aparente. Não podíamos perder os detalhes do que tínhamos acabado de ver e ouvir, por isso era hora de colocar tudo no papel.
Detalhes não escapavam das nossas canetas, que rapidamente preenchiam os bloquinhos de anotações. No meio de tanta descrição, um temor. O diálogo gravado pelo celular parecia não estar bom e neste instante nos era exigido cautela, o ouvido mais aguçado para compreender o que se passava entre tantos chiados. Mas ainda podíamos contar com a memória que, embora tão traiçoeira, não falhou. Impossível descrever R.A. e não mencionar o amor por uma mulher que, mesmo com problemas, era digna das palavras que diziam “enquanto eu conseguir aguentar, eu aguento”. E, pelo que dava a entender, ele tinha muita força para isso.
Anotações à parte, já eram 16h14min. Na saída, um bilhete da sorte fornecido pelo posto parecia nos animar: “Não podemos fazer tudo imediatamente, mas podemos fazer alguma coisa já”. E o nosso já eram as histórias que viriam ao nosso encontro nas próximas caronas. “Quem?” ou “o quê?” já não eram questões que nos preocupavam tanto, pois agora o desejo de conhecer novas pessoas falava mais alto.
O dono da zona
De placa erguida, não demorou muito para que à nossa frente fosse estacionado um simples Fusca branco. O modelo que não era novo, assim como seu condutor, trazia a bordo um menino de 4 anos de idade, que com mãos fortes não largava dos seus brinquedos. O motorista, senhor de 40 anos, católico acusado pelo terço pendurado no seu retrovisor, nos chamou para o embarque e, é claro, para viajar em mais uma história de vida.
Walmor Ganz não aparenta, mas o agricultor que estudou até a 4ª série, hoje vestido com uma camisa polo amarela e boné azul marinho com aba laranja, e pai de família, já foi dono de uma zona. “Chapéu de palha é o nome dela”, conta entre sorrisos e histórias, “mas a gente vendeu por 40 prestações de mil e meio”. O prostíbulo, que ainda existe, fica na BR que corta a cidade de Caibi – SC, e por um bom tempo foi o sustento desse senhor, onde, segundo o mesmo, havia noites em que o lucro rendia na casa dos mil reais.
Também nesse período de sua vida, o nosso motorista relata que casa e acaba por levar a esposa para trabalhar na Chapéu de Palha. Mas, é claro, Cleunice Ganz não fazia o papel das meninas contratadas por Walmor, ela apenas mantinha o local limpo e, quando necessário, vendia as bebidas. Assim, nasce a criança que nos acompanha nesta carona.
“O problema não era dinheiro, só tem que ter mulher, né? E a gente tinha 4, 5, 3, sempre variava”. Então, o real motivo que fez Walmor vender a casa de mulheres, ele nos conta, foi o estado de saúde de sua mãe e a educação do filho que não tinha no ambiente familiar um bom lugar para se viver. Saudade ele diz que não tem. Hoje, morando com sua mãe, padrasto, filho e esposa, cultiva as culturas de feijão, milho e ainda produz gado de corte. Para o atual agricultor, as coisas estão bem melhor assim.
A nossa viagem, no entanto, chega ao seu fim. A conversa que rendeu pouco mais de 11 minutos termina 3 km à frente de onde estávamos. O motivo da rapidez é que Walmor precisava pegar o caminho de casa. Virando à esquerda numa estrada de chão, ele segue a linha para sua terra depois de voltar de Iraí com o contrato de seu trator.
A despedida, tão rápida quanto a carona, é finalizada com o barulho do motor do carro, que a cada metro ia se atenuando e se perdendo na linha do horizonte. E nós, de volta à BR, esperávamos a próxima história, que nos levaria até o trevo de Maravilha (SC).
O sonho promissor
Paradas em um local quase que sem acostamento, os carros passavam desvairados em velocidade, fazendo com que poucos notassem a placa que erguíamos ou mesmo que ali estavam duas estudantes pedindo carona. Mas novamente não há demora, só que dessa vez o personagem não estaciona perto. É preciso correr até ele. Juntando nossas mochilas que estavam no chão, fomos rapidamente em direção ao veículo para conhecer mais uma história.
Com os vidros abertos, e logo a seguir as portas, Eder Tavares, de 33 anos, nos levaria até o trevo de Maravilha. Antes de entrarmos, explicamos a ele o objetivo da viagem: nada mais que ouvir e reescrever a essência da história daqueles que o acaso permitiu que parassem para nós. Ele se surpreende: “nunca passei por uma experiência como essa”. Argumentamos então que sempre tem a primeira vez e embarcamos.

Para Eder Tavares, representante comercial, não há nada melhor do que conhecer o mundo. Foto: Isadora Stentzler.
Eder, casado há um ano com Tassiane, é representante comercial de uma empresa que vende baterias automotivas. É um viajante apaixonado por veículos, o que é acusado logo pelo volante esportivo de seu carro, os dois alto-falantes, os dois módulos, as quatro cornetas, e as três baterias que compõem o seu som. Por causa dessa paixão, Eder desabafa sua maior dificuldade quando certa vez perdeu um veículo e um emprego.
O carro financiado com 20 mil reais investidos teve de ser devolvido à revendedora, somado a mais de 25 mil reais em empréstimos não devolvidos. “Na verdade, houve a separação do meu pai e da minha mãe, e eu acabei emprestando dinheiro até para parente”. Naquele ano, Eder soma à sua conta bancária um prejuízo de 45 mil reais. Instabilidade tamanha que refletiu no trabalho, levando-o a se afastar do posto.
Passado que teve volta por cima. Eder, que hoje conta com uma renda mensal na casa dos 5 mil reais, confessa: “Estável, eu? Eu não, quero é ficar rico!”. O jovem, que sonha em um dia manejar uma Lamborghini, quer mais é saber de ser feliz, viajar algum dia para o pantanal e, satisfeito com seus 5 semestres de Administração, nada de estudar, pois afirma: “Meus amigos que estudaram estão desempregados hoje”. Em resumo, se diz feliz por poder morar e viver bem.
Quanto ao futuro, Éder valoriza o presente. Deseja continuar indo para a praia nas férias e também fazendo aquilo que considera ser a melhor coisa: viajar pelo mundo. “Porque tu cresce muito na vida, inclusive por conhecer várias pessoas”, afirma ele. E sobre isso nós entendemos muito bem.
A mulher que se revela
Ao terminarmos de observar a janela do carro descer, nós nos deparamos com a imagem de uma mulher com visivelmente mais de trinta anos, os cabelos castanho-claro prendidos em um coque, óculos escuros (onde depois pudemos ver a palavra “secret” como detalhe do aro), a pele clara e a boca rosada que quando se abria não mostrava os dentes. Sendo esta última característica o que inicialmente aprovou com um sim o nosso trabalho de repórteres e que, logo depois, nos assustou com um silêncio de cerca de dois minutos quando mostramos o gravador. Essa pessoa teria algo para nos dizer?
Sônia Regina Pecin Kraemer, 37 anos, estava indo para Chapecó buscar o marido sindicalista que vinha de Florianópolis. Sônia trabalha há quatro anos com pesagem de produtos na empresa Terra Viva. Quando questionada sobre o que fazia antes deste emprego, ela listou profissões como a de doméstica, agricultora e professora. Foi então que surgiu o gancho para perguntarmos sobre a formação. Então ela nos surpreendeu dizendo que possuía somente o ensino médio completo, mas que havia lecionado em um acampamento do MST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra), na cidade de Abelardo Luz – SC. Sobre essa experiência, Sônia diz que, além de ter sido possível enxergar com outros olhos a realidade das pessoas deste movimento, serviu como uma realização pessoal ao ensinar aquelas crianças a ler e também sobre a luta em que estavam inseridas.
Aos poucos, nossa motorista foi esclarecendo detalhes sobre sua vida. Conta que em sua infância não ia à escola, pois tinha problemas de audição. Problema este que só fora resolvido muitos anos depois, quando o marido a levou para especialistas e, a partir de então, finalmente passou a usar aparelho auditivo. Hoje, uma vitória para Sônia em relação às melhoras com o aparelho é o atual emprego, que a faz se sentir capaz como ser humano. “Não se deve voltar atrás e sim seguir em frente”, ela afirma, pensando na estrutura pessoal e familiar que conseguiu.
Com filhos (um menino de 13 anos, o Cristian, e uma menina de 6, a Tainá) e um marido trabalhador de quem confessa ter ciúmes pela distância que o emprego muitas vezes impõe, Sônia se considera uma pessoa feliz. E aquele suspense de quando entramos no carro acaba de vez quando ela compartilha conosco um sonho de infância inspirado na personagem Gisa, da novela global “Sétimo Sentido”, de 1982, o de ser uma caminhoneira. Sônia abre um enorme sorriso, agora mostrando os dentes, e relatando que até já possui carteira para dirigir caminhão, e até 2012 pretende cair na estrada. O marido a apóia, mas ela ainda brinca: “agora é a vez dele ficar em casa me esperando”.
Em Chapecó
Chegamos em Chapecó. O cansaço nos toma conta, mas ao menos já completamos meio percurso da reportagem. O descanso no sábado serve como reposição das energias para que no domingo possamos recomeçar tudo de novo. Satisfeitas com as histórias colhidas, nos hospedamos na casa da família da Isadora, onde sua mãe nos espera para o jantar. Voltaríamos ao diário de bordo somente em algum horário da tarde de domingo. Mais cedo ou mais tarde, a única certeza é que o diário de bordo continuará.
Isadora Stentzler e Joana Schumann / Da Hora



Nossa, mesmo grande da vontade de ler e conhecer mais sobre a historia das pessoas haha